Lendo o artigo do Amigo e doutor Thiago de Oliveira Vargas, intitulado “A DEDUÇÃO DOS MATERIAIS DA BASE DE CÁLCULO DO ISS – CONSTRUÇÃO CIVIL: AUSÊNCIA DE DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A POSSÍVEL RESCISÃO DOS JULGADOS QUE A ADMITEM”[i], recordei-me de alguns votos que proferi enquanto membro julgador da Junta de Recursos Administrativos-Tributários do Município de Joinville – JURAT, nos idos dos anos 2013 e 2015.
Naquelas ocasiões, posicionei-me conforme abaixo transcrito:
“O caso concreto versa sobre a possibilidade ou não da dedução dos valores relativos aos materiais fornecidos pelo prestador do serviço, nas hipóteses descritas nos subitens 7.02 e 7.05, da lista de serviços anexa à LCM nº 155/2003, com idêntica correlação com a LCF nº 116/2003, destacando que a matéria é controvertida e se acha travada na Suprema Corte, em sede de repercussão geral, onde se firmou o entendimento no sentido de ser possível a dedução dos valores referentes aos materiais empregados na construção civil.
O instituto da “repercussão geral” – implementado pela Emenda Constitucional nº 45/2004 e regulamentado pela lei federal nº 11.418/2006 – possui o escopo de reduzir os inúmeros recursos extraordinários que diuturnamente ancoram à porta Supremo Tribunal Federal e visa tornar mais racional a atividade judicante, na medida em que proferida a decisão de mérito, a mesma modulará os efeitos dos demais processos que ostentem idêntico objeto, estreitando a porta de acesso às Cortes Superiores.
A diminuição do acesso as Cortes Superiores é tendência mundo afora, visto que o abarrotamento das pautas de julgamento impõe, cada vez mais, a implementação de requisitos que dificultem o conhecimento de recursos, tudo com o fim último de racionalizar a atividade jurisdicional, sendo a Suprema Corte dos Estados Unidos da América (EUA) um dos principais paradigmas dessa restrição aos recursos excepcionais.
Já no Brasil, esta realidade é recente e o instituto em comento ainda não possui seus contornos e efeitos definitivamente delimitados, sendo imperioso observar que a tradição do ordenamento jurídico pátrio jaz na codificação do direito e nega a prevalência dos precedentes judiciais, como o que o se pretende no caso dos autos, sendo a jurisprudência utilizada como fonte indireta do direito e desprovida do condão reformador da norma jurídica.
Como dito, o instituto da repercussão geral visa limitar a subida de inúmeros recursos extraordinários ostentando idêntico objeto. Numa linguagem figurativa é como se a Suprema Corte colocasse, no “hall” de entrada, uma placa e a todos informasse que já é de seu conhecimento o assunto a ser tratado. Contudo, há de se observar que a decretação da repercussão geral não significa dizer julgamento do mérito, visto que o mesmo será apreciado a posteriori e de forma colegiada.
É incontroverso, para este Relator, que o instituto da repercussão geral, não possui o condão de fulminar a eficácia da norma jurídica cogente, o que somente pode ser feito por via de institutos próprios – declaração via ação direta inconstitucionalidade (erga omnes) ou por via da inovação normativa a cargo do Legislador positivo. Ao se tomar como definitiva a decisão monocrática, estar-se-ia fulminando a eficácia de todas as leis municipais País afora, em flagrante ofensa a autonomia municipal e ao pacto federativo em geral.
A título exemplificativo, trago à lume o caso dos “serviços de registros públicos, cartorários e notariais” apreciado em sede da ADIN 3089-2/DF, onde o Supremo Tribunal Federal ao apreciar sua constitucionalidade, em sede de liminar, no final do ano de 2003, suspendeu em todo território nacional os efeitos normativos do subitem 21.01, da lista de serviço anexa à LCF nº116/2003 e, nos idos de 2008, ao apreciar o mérito da ação decidiu pela constitucionalidade da incidência do imposto municipal sobre os referidos serviços e convalidou todas as leis municipais que haviam inserido a dita atividade entre as hipóteses de incidência do imposto sobre serviços.
Em que pese sejam institutos distintos (ADI e “repercussão geral”), a temática aqui enfrentada deve ser tratada com extrema prudência, sob pena de rompermos a pilastra em que se assenta a autonomia municipal e de subtrairmos do erário público legítimos recursos, visto que ainda inexiste uma decisão de mérito em caráter definitivo e, tampouco, existe inovação legislativa em sentido contrário ao manifestado pelas doutas Autoridades Fiscais.
Dito isso, passo à análise da possibilidade deduções do valor dos materiais fornecidos pelo prestador do serviço, na forma do subitem 7.02, da lista de serviços e, de imediato, antecipo que a simples leitura do inciso I, do §2º, do artigo 7º, da LCF nº 116/03 poderá conduzir ao entendimento de que todos os materiais aplicados na obra são passiveis de dedução dos seus valores. Todavia, esta não será a melhor interpretação, pois o referido dispositivo deve, necessariamente, ser interpretado conjuntamente com o disposto na parte final do subitem 7.02, da lista de serviços, que assim dispõe:
(…) (exceto o fornecimento de mercadorias produzidas pelo prestador de serviços fora do local da prestação dos serviços, que fica sujeito ao ICMS). (Destacamos)
Interpretando sistemicamente a norma geral do ISSQN, temos que somente aqueles materiais produzidos pelo prestador do serviço fora do canteiro da obra deverão ser objeto da dedução, pois os mesmos se sujeitam a incidência do imposto sobre circulação de mercadoria e serviços de transporte intermunicipal e interestadual e de comunicação (ICMS).
A razão é simples. A expressão “produzida” traz consigo o conceito de fabricação ou industrialização e, por tal motivo, o bem produzido se acha inserto na cadeia de circulação, caracterizando conflito de competência tributária entre os Municípios e os Estados ou entre aqueles e a União Federal. Prevendo isto, o Legislador Infraconstitucional, à luz do que dispõe o inciso I, do art. 146, da Constituição Federal, determinou que o valor de tais materiais/mercadorias fosse expurgado do preço do serviço, fazendo incidir o ISSQN somente sobre a mão de obra aplicada.
Entretanto, não é toda e qualquer fabricação/produção que se sujeita a dedução, mas aquela efetuada pelo próprio prestador do serviço e necessariamente fora do canteiro da obra. Inobservado isto, o ISSQN incide sobre a integralidade da operação.
O ISSQN é um imposto cumulativo por excelência constitucional, ou seja, o mesmo incide sobre o preço bruto do serviço, independentemente das várias etapas da sua execução ou dos insumos aplicados, não se admitindo deduções do seu preço, ressalvados os casos expressamente previstos na lista de serviços – §2º, do art. 1º, da LCF nº 116/2003:
(…);
§ 2o Ressalvadas as exceções expressas na lista anexa, os serviços nela mencionados não ficam sujeitos ao Imposto Sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS, ainda que sua prestação envolva fornecimento de mercadorias.
(…).
A inteligência do legislador infraconstitucional, em respeito ao escopo normativo do inciso I, do art. 146, da Magna carta, caminhou no sentido de preservar somente os casos em que ensejassem conflito de competência e, no tocante a isto, foi taxativo nas hipóteses em que não deve haver a dupla incidência, a exemplo do subitem 7.02, da lista de serviços.
Interpretar isoladamente o inciso I, do §1º, do art. 7º, da LCF nº 116/2003, fatalmente o entendimento será no sentido de se deduzir, do preço pactuado, o valor dos materiais empregados na obra, para fins de apuração da base de cálculo do ISSQN.
Não se nega a possibilidade de dedução. O que se busca entender é quais materiais ensejam ou não a dedução e foi nesse sentido que caminhou a Suprema Corte, quando decretou a repercussão geral, não significando dizer, julgamento antecipado do mérito e consequente verticalização dos Tribunais País afora.
É certo, para este Relator, que a interpretação sistêmica da lei complementar federal nº 116/2003 não deixa dúvidas quanto a dedução, a qual está limitada aos valores dos materiais produzidos pelo prestador do serviço fora do local da obra, visto que se trata de hipótese de circulação de mercadoria e, portanto, sujeito ao campo de incidência do ICMS.”
Notadamente os votos que proferi não possuem a mesma envergadura do posicionamento externado pelo Ilmo Dr. Thiago de Oliveira Vargas. Todavia, caminha no mesmo sentido de dizer que os posicionamentos dos Tribunais de Justiça Estaduais e até mesmo do Superior Tribunal de Justiça estão equivocados, uma vez que houve apenas o reconhecimento, de forma unilateral (monocraticamente), da possibilidade de dedução, fato este incontroverso. Contudo, pende a decisão sobre o mérito, reconhecendo ou não se a dedução versa sobre a totalidade dos materiais empregados na obra. Como dito, repercussão geral reconhece a relevância da matéria e sua influencia na ordem jurídica, reclamando o posicionamento das Cortes Superiores com o fito de elidir os conflitos latentes.
Nesse sentido, é importante que os Municípios e suas respectivas Procuradorias atentem para o que está positivado nas respectivas leis locais, quanto a possibilidade ou não da dedução dos valores dos materiais aplicados nas obras de construção civil. Se o entendimento for pela dedução, é salutar que a lei municipal, em homenagem ao princípio da estrita legalidade e do postulado da segurança jurídica, estabeleça a dedução de forma objetiva, enquanto não sobrevier a decisão final da Suprema Corte. A não previsão legal da dedução, face ao pseudo-precedente emanado monocrativamente do STF, pode ser caracterizado renúncia de receita, na hipótese do julgamento final caminhar no sentido de limitar a dedução ao valor daqueles materiais definidos na parte final do subitem 7.02, da lista de serviços.
Por outro lado, se o entendimento for aquele do qual partilho, no sentido de inexistir dedução, excetuando aquelas previstas na parte final do subitem 7.02, da lista de serviços, é necessário que os Fiscos continuem efetuando os lançamentos tributários e as Procuradorias Municipais continuem insistindo com ações de execução fiscal, até que se tenha o deslinde da celeuma. Os riscos dessas ações são as possíveis sucumbências, na hipótese de prosperar a tese de que o valor dos materiais fornecidos pelo prestador do serviço é dedutível, independente de ser ou não produzido dentro ou fora do canteiro da obra ou se adquirido de terceiros.
Em ambas as hipóteses, se correr o bicho pega, mas se ficar o bicho come. Durma-se com um barulho desses e enquanto isto, viva a completa insegurança jurídica para os Fiscos e para os Contribuintes.
Informações Sobre o Autor:
Miqueas Liborio de Jesus
Auditor Fiscal do Município de Joinville (03/1998), Professor das cadeiras de Direito Tributário I e II, do Curso de Direito da Associação Catarinense de Ensino (ACE), Bacharel em Ciências Jurídicas (Direito), pela Universidade da Região de Joinville (Univille), aprovado no exame da OAB em 2006 e especialista em direito tributário pela FGV. (www.miqueasliborio.com.br)
[i] Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/a-deducao-dos-materiais-da-base-de-calculo-do-iss-construcao-civil-ausencia-de-decisao-do-supremo-tribunal-federal-e-a-possivel-rescisao-dos-julgados-que-a-admitem – Acessado em 06/08/2018.
Baixar o arquivo em PDF: Dedução de Materiais na Construção Civil
Publicado em 06/08/2018.
2 Comments
Desculpe, mas a linha do artigo está totalmente equivocada. Confunde-se aspectos básicos como “mercadoria” e “material”.
Prezado Dr. Fernando Beltrão Lemos Monteiro,
Primeiramente, agradecido pela visita ao meu humilde site/blog e por ter desprendido parte do vosso precioso tempo para se dedicar a ler o conteúdo e, especialmente, pelo apontamento sobre o suposto equívoco quanto ao entendimento por mim exarado em referência aos conceitos básicos e distintivos existentes entre “mercadoria” e “materiais”.
Eis a beleza e magnitude do direito. É isto que torna instigante a sublime arte de interpretar.
Certamente que são conceitos distintos e quanto a isto não preciso me declinar a elucidá-los aqui. Todavia, é justamente neste particular que subjaz os conflitos existentes na seara do ISSQN, no que se refere a apuração da base de cálculo dos serviços prestados na construção civil. De longa data o Superior Tribunal de Justiça possui posicionamentos que agasalham todos os gostos.
Oportuno dizer que, para fins do ISSQN na construção civil, entende-se por material tudo aquilo empregado pelo construtor na prestação do serviço e que fica incorporado na estrutura da obra ou não. Sob esta perspectiva, é irrelevante sua origem, ou seja, se a aquisição foi de terceiros ou oriunda de produção própria, desde que fora do canteiro da obra. Para fins da prestação do serviço tudo é insumo e com tal indispensável à efetividade do contrato.
A discussão jaz no vazio interpretativo, quanto a dedução. Vale lembrar que, para fins do ICMS, o Construtor é sempre consumidor final em relação as aquisições de terceiros, mas não o será quando realizar a produção e livremente disponibilizar ao mercado em geral. Eis o motivo da parte final do subitem 7.02, taxativamente, dispor que o “fornecimento de mercadorias produzidas pelo prestador de serviços fora do local da prestação dos serviços, que fica sujeito ao ICMS”.
Apenas para elucidar, no momento que a mercadoria produzida pelo Construtor sair do seu estabelecimento em direção da obra, estar-se-á configurada a incidência do imposto estadual. Contudo, ao ingressar no canteiro da obra ela perde seu status inicial – de algo na cadeia de circulação (mercadoria) – e passa a ser tratada pura e simplesmente como material, ou seja, como insumo à prestação do serviço.
Apenas para não me delongar mais, registro que o ISSQN é um imposto que incide sobre a totalidade do preço do serviço, ressalvadas as hipóteses presentes na lista de serviço onde estiver prevista a dedução ou impossibilidade de incidência.
Mais uma vez, agradecido pela oportunidade de refletir. Essa discussão nas Cortes Superiores vai longe, salvo se a reforma tributária alardeada ocorrer.
Um forte abraço.
Miqueas Liborio de Jesus